02 de Julho de
2012
Maria Lúcia Fattorreli publicado no: Unamérica
Maria Lúcia Fattorreli publicado no: Unamérica
Assistimos, nos últimos dias, às crescentes mobilizações
sociais que têm levado centenas de milhares de pessoas às ruas, em toda a
Europa, protestando contra as drásticas conseqüências da crise da dívida pública
que atinge fortemente a economia européia e a vida de seus
cidadãos.
Muito se comenta sobre a necessidade de pagar a dívida e
o remédio empregado pela Comissão Européia, juntamente com o FMI e o Banco
Central Europeu, é um amargo composto de medidas de ajuste fiscal: reforma da
previdência visando aumentar a idade para aposentadoria e reduzir benefícios dos
trabalhadores; demissão de milhares de servidores públicos; corte de serviços
públicos; aumento de tributos; privatizações, dentre outras.
Pouco se comenta que essa crise da dívida decorre
principalmente da crise do setor financeiro bancário deflagrada em 2008: os
maiores bancos internacionais do planeta corriam risco de quebra, devido ao
excesso de derivativos sem lastro e outros produtos financeiros sem respaldo e
sem valor algum – chamados de “ativos tóxicos1” pela grande mídia. Imensurável
quantidade de sucessivas séries e mais séries desses papéis podres criaram uma
“bolha” que inundou o mercado financeiro mundial de verdadeiro
“lixo”.
A crise atingiu primeiramente os grandes bancos
norte-americanos, atolados desses papéis podres. A emissão descontrolada de tais
produtos financeiros foi possibilitada porque os controles existentes,
determinados pela SEC2 – órgão criado logo após a crise de 1929 e que desde
então exercia o papel de controlar a qualidade e autenticidade dos papéis
negociados no mercado financeiro – foram desrespeitados por diversas grandes
instituições financeiras3.
A quantidade de derivativos e papéis tóxicos alcançou
níveis tão elevados que o Presidente Barack Obama chegou a mencionar a criação
de “bad banks”, instituições que se prestariam a acatar volumes expressivos
desses papéis podres, realizando uma “faxina” para aliviar o sistema financeiro
americano4. Outra proposta do presidente do FED norte-americano Ben Bernanke foi
a criação de “big bad banks”, ou “aggregator bank”, uma super instituição capaz
de absorver quantidades ainda maiores desses papéis podres.
A mesma idéia surgiu também na Europa no início de 2009,
conforme notícia divulgada pelo jornal Financial Times5:
“Os ativos tóxicos de problemáticos bancos alemães serão
evacuados para “bad banks” sob um plano governamental, segundo o Finantial
Times. Ao invés de instalar um “bad bank” nacional, o governo alemão quer que os
bancos organizem veículos individuais para amparar seus ativos
ilíquidos.”
É importante ressaltar que as instituições que emitiram
esses ativos tóxicos eram as maiores e mais importantes do mundo financeiro
internacional, porque estas eram justamente as que possuíam credibilidade
suficiente para ter seus próprios papéis acatados e negociados no Mercado
financeiro. Apenas algumas dessas importantes instituições chegaram a quebrar –
Lehman Brothers, por exemplo – mas logo os Estados Unidos aprovaram plano de
salvamento do sistema financeiro que incluiu a estatização de parte do Citibank
e outras transferências bilionárias de recursos públicos para instituições do
sistema financeiro privado, a fim de salvá-las e impedir sua
falência.
Destino diferente tem sido enfrentado por inúmeros fundos
de pensão, que passam por grandes dificuldades6, deixando trabalhadores
completamente desamparados. Esse tema merece atenção total no Brasil, tendo em
vista os riscos de transferência de ativos tóxicos para o País, ao mesmo tempo
em que a União, estados e municípios impulsionam a criação de fundos de pensão
para servidores públicos.
Os bancos ameaçados de falência cobravam ações urgentes
dos governos alegando contaminação da crise iniciada nos Estados Unidos7, sendo
que a estimativa, no início de 2009, era de que apenas no sistema bancário
alemão haveriam US$ 1,1 trilhão de ativos tóxicos.
Reuniões emergenciais organizadas pela Comissão Européia
levaram à aprovação de plano de salvamento dos bancos, mediante o alívio de
papéis podres existentes no sistema bancário. Desde o início desse plano, todos
estavam cientes do enorme risco que representava para toda a região, como mostra
a notícia seguinte, de fevereiro/20098, segundo a qual “Um salvamento de papéis
podres em poder de bancos europeus poderia mergulhar a União Européia em crise,
segundo documento confidencial de Bruxelas”:
Da notícia se depreende que ademais de cientes dos riscos
de ruína econômica, todos os países do Norte passaram a destinar significativos
volumes de recursos para salvar instituições financeiras em risco de quebra. Não
há a devida transparência sobre as bases da decisão tomada – que se baseou em
documentos secretos, conforme mencionado na notícia acima – nem acerca da
quantidade de recursos efetivamente destinada para esse fim. Estimativas apontam
para muitos trilhões, mas nenhum país revelou claramente a quantia destinada
para o salvamento de bancos desde 2008.
A parte mais preocupante da história é que os países do
Norte não possuíam, em seus respectivos orçamentos públicos, recursos
suficientes para as operações de salvamento bancário que decidiram
efetuar.
EUA e países europeus criaram dívida pública mediante a
emissão de títulos públicos, para entregá-los aos bancos, a fim de reparar o
enorme rombo gerado pela “bolha” de papéis podres. Dessa forma, uma parte
significativa dos títulos soberanos desses países não representaram
verdadeiramente dívida pública, ou emissão de títulos para obter recursos para
financiar o Estado, senão a utilização do mecanismo da divida para garantir
fundos para instituições financeiras.
Decorridos pouco mais de dois anos, as previsões se
concretizam, com tremenda crise da dívida em todos os países, e pior: a conta
está sendo repassada para a sociedade como um todo e os bancos estão a salvo,
pois transferiram os “ativos tóxicos” para os “bad Banks” ou diretamente para os
cofres públicos.
Em reunião do G-20 realizada em abril/2009 foi proposta a
regulamentação do mercado financeiro internacional, pois justamente a falta de
regulamentação permitiu a emissão desenfreada de derivativos sem lastro que
originaram toda essa crise, com alto custo para o povo europeu. Não
passou.
No ano seguinte, o G-20 apenas discutiu a necessidade de
regulação mais rigorosa para grandes instituições financeiras, consideradas
“grandes demais para quebrar”, admitindo9 que tal regulação seria uma medida
para evitar que novas eventuais falências não tivessem que ser resolvidas pelos
governos, aprofundando a dívida pública e colocando economias inteiras em
risco.
A situação predominante no mercado financeiro
internacional é a desregulamentação, a autonomia do setor financeiro bancário, a
liberdade de movimentação de capitais, a especulação e, obviamente, os “bad
Banks” e toneladas de ativos tóxicos.
Nessa circunstância, seria saudável que o Brasil
investisse suas riquezas em “ativos internacionais”?
Creio que a resposta mais prudente seria NÃO, pois além
do evidente risco de adquirirmos os ativos “tóxicos”, que são material abundante
no mercado financeiro internacional, nosso país – campeão em desigualdades
sociais e regionais – tem inúmeras destinações aqui mesmo para a realização de
investimentos reais.
Diante disso, não se compreende a razão pela qual a Lei
nº 12.351, aprovada na véspera do Natal de 2010, determinou10 que a aplicação
dos recursos do Fundo Social do Pré-sal (FS) será realizada da seguinte forma:
“investimentos e aplicações do FS serão destinados preferencialmente a ativos no
exterior”.
Tal operação representa efetivo risco de absorção, para o
Fundo Social do pré-sal, dos abundantes ativos tóxicos que contaminam as
economias da Europa e Estados Unidos, cujo rendimento será nulo!
A Presidente Dilma chegou a afirmar que pretende utilizar
os recursos do Pré-Sal para reduzir a pobreza e para outras áreas sociais.
Porém, a Lei aprovada pelo Congresso Nacional prevê que os recursos do Pré-Sal
serão destinados ao exterior, e somente o rendimento desse fundo será destinado
para as áreas sociais. Na realidade, o Fundo Social corre o risco de se tornar o
“lixão” que aliviará de vez os trilhões de papéis podres que ainda inundam o
sistema financeiro internacional.
Também não se compreende a razão pela qual a Lei nº
11.887/2008, que criou o Fundo Soberano (FSB), determinou que “Os recursos do
FSB serão utilizados exclusivamente para investimentos e inversões financeiras
(…) sob as seguintes formas: I – aquisição de ativos financeiros externos
(…)”.
Para aumentar ainda mais o risco, as alterações
introduzidas pela recém aprovada Lei 12.409/2011 permitiram que a União
emitisse, a valor de mercado, sob a forma de colocação direta em favor do FSB,
títulos da Dívida Pública Mobiliária Federal.
Evidencia-se, dessa forma, a nítida operação de troca de
“ativos internacionais” por títulos da dívida brasileira, passando pelo Fundo
Soberano. Este é mais um risco de importação de papéis podres para o país, e
mais uma evidência de que o instrumento da dívida pública foi usurpado pelo
mercado financeiro, deixando de funcionar como um mecanismo de financiamento do
Estado para se tornar um produto financeiro que possibilita grandes
negócios.
As experiências de auditoria da dívida na América Latina
– auditoria oficial no Equador e auditoria cidadã no Brasil – bem como as
investigações da recém CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados provaram
que, desde a década de 70, a dívida externa com a banca privada internacional
favoreceu unicamente aos bancos credores, pois nos últimos 40 anos esse tipo de
dívida representou transferências líquidas brutais ao exterior, ao mesmo tempo
em que a dívida se multiplicava por ela mesma. A atual dívida interna brasileira
é também externa, pois grande parte dos títulos encontra-se em poder de bancos,
fundos de pensão e fundos de investimento estrangeiros, que obtêm lucros
exorbitantes face à incidência de juros altos sobre a variação cambial, isentos
de tributos.
A auditoria da dívida também provou que a crise
financeira que abalou as economias do Terceiro Mundo no início da década de 80
foi provocada pelos mesmos grandes bancos privados internacionais que
controlavam o FED e a Associação de Bancos de Londres11 – que procederam a
elevação unilateral dessas taxas de 6 para mais de 20%. Evidenciou também que a
crise provocada pelos bancos abriu a oportunidade para a interferência expressa
do FMI em nossas economias, impondo planos de ajuste fiscal idênticos aos que
agora são impostos à Europa.
A história se repete. Crises provocadas pelos bancos são
transferidas às Nações por meio do endividamento público.
O Equador deu uma lição de soberania ao mundo e soube
aproveitar os resultados da auditoria da dívida12, anulando 70% de sua dívida
externa em poder da banca privada internacional, o que está permitindo aumento
dos investimentos sociais principalmente em saúde e educação, bem como a
construção de rodovias de concreto, dentre outros investimentos
reais.
É muito importante que os países europeus também iniciem
rapidamente uma auditoria da dívida – seja oficial, cidadã ou parlamentar. Nesse
sentido, a Irlanda já iniciou os trabalhos de forma cidadã13, utilizando nossa
experiência brasileira como exemplo. Da mesma forma, o documento final de grande
conferência realizada em Atenas em maio/201114 concluiu pela necessidade de
organizar uma comissão de auditoria cidadã, também mencionando a experiência
brasileira.
O grande mérito da auditoria da dívida é a oportunidade
de acessar provas e documentos que revelem a Verdade: a natureza e a origem da
dívida; as ilegalidades e ilegitimidades; os beneficiários e os responsáveis,
propiciando ações de ordem legal e política, em busca da Justiça.
INTERSINDICAL
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