Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. v.12 n.34 São Paulo set./dez. 1998
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141998000300004
O QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NO MANIFESTO COMUNISTA?
A prova da história
O
GRAU DE INFLUÊNCIA certamente significativa da doutrina de Marx e
Engels pôde ser aferido pelo encontro internacional realizado em
Paris, em maio deste ano, o qual reuniu muitas centenas de marxistas
de algumas dezenas de países e deu ensejo à publicação de doze
coletâneas de artigos e ensaios celebrando o sesquicentenário do Manifesto do partido comunista.
Com relação ao Brasil, basta notar que sua delegação ao encontro
de Paris foi numerosa e expressiva (a mais numerosa, depois da francesa)
e que, só em 1998, foram publicadas quatro novas traduções do Manifesto, incluindo a desta edição da revista ESTUDOS AVANÇADOS.
O que não pode deixar de ser avaliado nas circunstâncias da
dissolução da União Soviética e do desmoronamento dos regimes
comunistas do Leste Europeu.
Enquanto
perdurar, o capitalismo suscitará tendências anticapitalistas. O
escrito de dois jovens intelectuais alemães, publicado em fevereiro
de 1848, em nome de uma obscura Liga dos Comunistas, deu a partida
precisamente à trajetória secular de uma destas tendências. A teoria
que recebeu o nome de marxismo (rejeitado pelo próprio Marx) inspirou
partidos políticos poderosos e veio a ser a doutrina oficial de um
sistema de Estados durante dois terços do século XX. Hoje,
entretanto, tampouco se pode deixar de constatar que o marxismo
atravessa uma situação de crise, certamente a pior de sua trajetória.
No texto breve e juvenil do Manifesto, podemos encontrar
aqueles pontos fortes do marxismo que explicam o seu impulso
vitorioso, mas também as teses que vieram a ser contestadas pelo
desenvolvimento histórico.
Marx
e Engels acertaram em cheio quando identificaram no proletariado a
classe social que devia antagonizar o domínio da burguesia. O
proletariado não só era a classe explorada pela burguesia, criadora
da riqueza que esta convertia em capital, como era a classe que
crescia com o próprio capital. A observação da Revolução Industrial
na Inglaterra – então, o único país capitalista plenamente
constituído – permitia fazer a inferência acerca do potencial social
de crescimento do proletariado, em contraste com os camponeses, os
artesãos e os pequeno-burgueses. O grande giro estratégico do Manifesto
consistiu em propor ao movimento operário a substituição da utopia
pela política com fundamentação na ciência. Ao invés de seitas
conspirativas apolíticas, guiadas pela miragem de imaginárias
sociedades perfeitas, era preciso levar à luta por objetivos políticos
concretos a própria massa da classe operária. O objetivo final
deveria ser a conquista do poder do Estado e a implementação de um
programa radical de transformação comunista da sociedade. A sociedade
capitalista, com o seu ethos baseado na competição
egocêntrica, seria desfeita para ceder lugar a uma associação guiada
pelo supremo princípio moral do desenvolvimento livre de cada
indivíduo como condição para o livre desenvolvimento de todos.
Durante
mais de um século, o processo histórico confirmou a previsão
marxiana a respeito do potencial do proletariado. Este cresceu e
incrementou sua capacidade de auto-organização à medida que crescia o
capitalismo. A acumulação de capital também era uma acumulação de
operários, o que produzia incoercível incremento da luta de classes
anticapitalista. A previsão marxiana se confirmou igualmente na
sucessão de crises e catástrofes que marcaram o caminho percorrido
pela burguesia e impuseram sacrifícios imensos à humanidade.
Não
obstante, o processo histórico seguiu um rumo essencialmente diverso
daquele antecipado por Marx e Engels. Justamente o proletariado mais
forte, nos países capitalistas economicamente mais avançados,
rejeitou a revolução socialista e deu preferência à conquista de
benefícios reformistas no quadro do regime burguês. As revoluções de
inspiração socialista somente foram vitoriosas nos países de
predominância camponesa, onde o proletariado era fraco. O fato de ser
a classe organicamente explorada pelo capital não fundamentou
necessariamente a propensão revolucionária do proletariado.
Demais
disso, enquanto as relações de produção capitalistas se formaram,
de maneira espontânea, nas entranhas da sociedade feudal, de tal
maneira que as revoluções burguesas não precisaram construir
o capitalismo, as revoluções pretensamente socialistas não
encontraram relações de produção socialistas objetivamente
constituídas e precisaram se jogar na sobre-humana tarefa de construir
o socialismo. Se o modo de produção capitalista surgiu pronto e
acabado diante dos revolucionários burgueses triunfantes, porque já
existia antes que houvessem tomado o poder, o modo de produção
socialista só contava com imprecisas premissas materiais, antes e depois
da conquista do poder pelos revolucionários comunistas. Já por
precisar ser construído, o socialismo revelou-se problemático.
A
questão do sujeito da revolução socialista tornou-se ainda mais
controversa a partir da década dos 70 do século XX, com a acentuação
da disjunção entre crescimento do capitalismo e crescimento do
proletariado industrial. O fato de que este se encontra submetido a um
processo de encolhimento e de perda de força social coloca diante dos
marxistas o desafio da definição do sujeito da revolução socialista
nas novas condições do terceiro milênio. Não só o proletariado
recebe uma configuração muito diferente daquela conhecida por Marx e
Engels, como a estrutura da sociedade capitalista atual se revela
muito mais complexa e diversificada do que registraram no Manifesto.
A
este desafio se acrescenta o da atualização da metodologia marxista.
Se teve uma concepção dialética da ciência, superior ao positivismo
imperante no século XIX, Marx não foi imune, contudo, à idéia
determinista das seqüências inevitáveis, que fez do comunismo a
culminância absoluta da aventura da espécie humana sobre o planeta
terra. No entanto, as ciências chamadas de exatas – a física, a
química, a biologia – impregnam-se cada vez mais da concepção de que a
evolução da matéria inclui o casual, o caótico e o imprevisível. Os
sistemas só podem existir com a presença de conexões internas
deterministas, mas a sucessão entre sistemas se processa com um grau
variável, porém substancial, de incerteza. Torna-se impraticável
qualquer pretensão de ciência social que não tenha em vista a mesma
linha de pensamento.
A
indeterminação do futuro não exclui a possibilidade e a necessidade
de fundamentação científica da ação política. Sob este aspecto, o
marxismo continuará ferramenta intelectual de primeira ordem para todos
os movimentos anticapitalistas. Mas só poderá dar a certeza da
luta, nunca dos seus resultados.
A
sociedade pós-revolucionária não será mais tão-somente uma imposição
de leis históricas impessoais, porém, conjuntamente, a encarnação
de decisões subjetivas. Dos agentes revolucionários se exige, ao
mesmo tempo, o conhecimento abrangente das condições objetivas e a
responsabilidade moral, plena e integral, pelas opções escolhidas.
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