Por Cátia Lapeiro
É uma opinião largamente
difundida pelo sistema capitalista que a educação seja algo de
apolítico, ou, como se costuma frequentemente dizer, seja «neutra». Esta
afirmação reflete uma concepção de educação que prescinde dos elementos
sociológicos que a condicionam, e cria o conceito de «educação pela
educação», naquilo que é um espaço social. Ao contrário, se
considerarmos a educação como determinada pela forma social dentro da
qual se constituem as suas finalidades, e na qual deve ser realizada,
este conceito acha-se imediatamente envolvido nos contrastes reais da
sociedade, ou seja, inserido no contexto da luta de classes. A educação
preenche um lugar insubstituível nas sociedades humanas, na construção
da sua história e na estruturação das relações entre os homens. Por
isso, a educação de massas é um dos mais potentes instrumentos de
controle das mesmas, como também pode ser um poderoso instrumento para a
sua libertação. A edificação da consciência humana está profundamente
interligada com a educação e a forma como se aprende e com o que se
aprende. Assim, dominar sistemas educativos no quadro actual do sistema
capitalista é um enorme passo para a consolidação do seu poder. As teses
marxistas fundamentais que dizem respeito à educação baseiam-se no seu
caráter de classe, ou seja, na ideia de que a educação é um instrumento
da classe dominante ao serviço dos seus interesses de classe.
A questão da educação
constituída para perpetuar o sistema não se prende só com a sua clara e
cada vez maior elitização, que afasta per si os filhos dos
trabalhadores dos mais elevados graus de ensino. Este é um dos fatores
fundamentais, mas a utilização da Educação pelo capitalismo consegue ir
mais longe. E a temática deste texto prende-se sobretudo com os
conteúdos escolares. Este é um tema que pode ser muito abrangente, do
ponto de vista do tipo de conteúdos e da forma como podem ser incutidos.
Apenas serão dados alguns exemplos, dando preponderância aos manuais
escolares, que são dos elementos mais paradigmáticos de transmissão de
conteúdos; assim como ao ensino da História, tendo em conta o seu papel
de relevo para a formação de representações sociais e concepções do
mundo.
São diversos os recursos
didáticos disponíveis em cada escola para apoio à prática letiva dos
docentes, mas nenhum deles conseguiu a centralidade e o destaque no
quotidiano escolar, que têm os manuais escolares, ao longo de várias
gerações. O manual escolar transformou-se num dos recursos didáticos
mais utilizados, constituindo suporte ao trabalho do professor,
delineando a natureza da sua atividade, e tendo-se tornado, em alguns
casos, um substituto do próprio programa da disciplina. Corrêa (1),
refere-se aos manuais escolares como configurando um objeto em
circulação, sendo por isso veículos de circulação de ideias que traduzem
valores e comportamentos que alguns desejam que sejam ensinados. E vai
mais longe, falando mesmo numa política do manual escolar, que visa a
formação das massas populares com base em conhecimentos que alguns acham
que deveriam ou não ter acesso, significando assim o controle sobre os
conteúdos escolares e, de certo modo, o controle sobre as práticas
escolares e a produção dos próprios manuais.
Uma das questões que se coloca é
a seletividade do conhecimento na Escola. A forma como, entre todo um
vasto campo possível de passado e presente, se escolheram como
importantes determinados significados e práticas, enquanto outros são
negligenciados e excluídos. E muitas vezes, alguns desses significados
são reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que fundamentam a
cultura dominante. Outra das questões é a estrutura constitutiva da
maioria dos currículos escolares centrar-se em torno do consenso. Poucas
são as tentativas sérias de lidar com o conflito, sendo que em vez
disso «investiga-se» uma ideologia do consenso que revela-se pouco
semelhante com os significados e contradições complexas que envolvem o
controlo e a organização da vida social. Deste modo, a chamada «tradição
selectiva» prescreve que não se ensine, ou irá seletivamente
reinterpretar a verdadeira história da classe operária ou a história da
mulher (por exemplo). A Escola, a pretexto de ser neutra, não aborda
muitas vezes questões que estão na base da existência das classes
dominadas: os salários, as greves, o desemprego, as guerras coloniais.
Também ocorre que considerações sobre a justiça da vida social surjam
progressivamente despolitizadas e transformadas em enigmas supostamente
«neutros». Como disse Marx (1843), não se devem aceitar as ilusões de
uma época, as próprias abordagens das participantes fundamentadas no
senso comum sobre as atividades intelectuais e programáticas, mas sim o
investigador deve «situar» tais atividades no campo mais vasto do
conflito econômico, ideológico e social.
Para Silva (2),
os discursos escolares sobre a história, estão «embrenhados» de uma
concepção de historicidade onde o principal nexo interpretativo está nos
encadeamentos cronológicos, sem que seja atribuída qualquer importância
aos intérpretes, às relações de poder que sustentam o seu trabalho, e
aos problemas construídos pelo processo de conhecimento. Neste modo de
conceber a aprendizagem não há espaço para considerar o estudante como
um agente capaz de propor questões ou dispor conhecimento a partir da
sua própria experiência social. Stephanou (3),
aborda três características do conhecimento histórico contemplado nos
currículos, que se podem eventualmente aplicar aos currículos
portugueses: a) o fato de deter-se sobre fatos passados, acentuando a
atuação de personagens especiais, cujas intenções, propósitos e vontade
são propulsores dos eventos históricos destacados nos cenários das
diferentes épocas. Aparece claramente uma concepção de sujeito autônomo
nestas formulações; b) o destaque dado aos acontecimentos oficiais; c) a
apresentação dos fatos por meio da sucessão cronológica, dispostos
linearmente, convergindo para a noção de evolução e de relações de
causa-efeito.
Podemos dizer que o caráter
evolutivo da História faz parte de uma leitura humana do real, e não de
um dado concreto e objetivo. O social é movimento, e essa noção
constitui um critério fundamental da explicação científica, uma vez que
permite desnaturalizar os fenômenos históricos e sociais, demonstrando
que não são imutáveis, e não se repetem(4).
Uma suposição básica parece ser a de que o conflito entre grupos de
pessoas é inerente e fundamentalmente mau, e que nos deveríamos esforçar
para o eliminar dentro do quadro estabelecido das instituições, em vez
de ver o conflito e a contradição como «forças propulsoras» da
sociedade, enquadrado na luta de classes.
Passemos a alguns exemplos
concretos. Olhando para o conjunto de manuais escolares de História do
9.º ano, que mais foram utilizados entre 2005 e 2008, em escolas do
distrito de Coimbra, podemos retirar várias conclusões, somente
analisando os conteúdos da abordagem ao regime fascista em Portugal, à
Guerra Colonial e à Revolução de Abril, momentos tão relevantes na
história do nosso país.
Comecemos pelo tema da Guerra
Colonial. Um dos exemplos mais flagrantes reporta-se à contextualização
da Guerra, nomeadamente a referência aos seus antecedentes ou causas. O
ponto de vista dos países colonizados que é apresentado nesta categoria é
na maioria das vezes apenas a descrição do surgimento dos movimentos
independentistas. Ou mesmo os confrontos e ataques que surgiram nas
colônias. Pouco relevadas são as causas destes confrontos ou as causas
do surgimento de movimentos independentistas organizados. Quase nenhum
manual se refere às características das condições de vida dos povos
colonizados, à forma como foram explorados e quiseram resistir, como
razão para o desencadeamento dos confrontos. Tal confirma-se igualmente
quando analisamos a categoria das consequências da Guerra Colonial. No
que concerne às consequências para os países colonizados, é claramente
dada menos relevância aos custos humanos dos países colonizados. Para
além dos custos humanos, em vários manuais, a única consequência que
aparece refere-se à construção de infra-estruturas nos países
colonizados que contribuiriam para o desenvolvimento das colônias.
Poderíamos dizer ainda, que o ônus do desencadeamento da Guerra Colonial
aparenta ser colocado várias vezes nos movimentos independentistas.
Vários manuais deixam claro que o início da guerra pertence aos
movimentos independentistas, talvez esquecendo que esta é o
desencadeamento de várias causas. É aqui patente a confirmação do que
dizia Apple (5),
quando se referia à seletividade do conhecimento na Escola, que se
reflete nos currículos e manuais escolares. Ou seja, a forma como se
escolhem determinados significados e práticas, enquanto outros são
negligenciados e excluídos. A própria caracterização dos movimentos
independentistas reflete a opção por um determinado tipo: uma
caracterização intimamente ligada a conceitos de caráter mais agressivo –
a maioria das vezes são caracterizados como guerrilheiros, e mesmo como
atacantes e rebeldes.
Quando é analisada a
caracterização de Portugal e das políticas do regime fascista do ponto
de vista econômico, é de referir que é dado destaque ao atraso econômico
e agrícola, mas são os Planos de Fomento Econômico que merecem um maior
destaque na maioria dos manuais. Pouco ou nada é referido acerca da
política monopolista, apenas surgindo uma componente num único manual
escolar, que poderia pressupor o monopolismo – «favorecimento dos
grandes industriais e banqueiros». Quando analisamos o chamado
«marcelismo», do ponto de vista econômico, apenas são feitas
referências, ainda que em poucos manuais, a um incentivo à
industrialização e abertura da economia ao estrangeiro, referenciando
apenas elementos positivos do contributo deste governo para a economia.
Do ponto de vista social,
durante o governo de Salazar, é claramente destacada a questão da
emigração e do êxodo rural, em detrimento da descrição de outros
aspectos sociais. Vários aspectos sociais, que são certamente fatores
deste fenômeno migratório, são na maioria dos manuais apresentados
genericamente como «más condições de vida que levaram à emigração ou ao
êxodo rural». Ou seja, os manuais escolares referenciam várias
componentes de aspectos sociais – os baixos salários, a falta de
instrução ou a falta de condições de habitabilidade – mas estas
referências são breves e muito pouco descritas, seja no texto genérico,
seja nos documentos apresentados. A descrição das políticas sociais
durante o «marcelismo» resume-se à Reforma do Ensino e ao alargamento da
Providência Social. É evidente que dos aspectos mais referenciados com
conotação negativa, e descritos como fatores de descontentamento
relativamente ao governo de Salazar, são os ataques às liberdades
democráticas, para além da Guerra Colonial. A descrição das questões
sociais é pouca, comparativamente a este aspecto e aos aspectos da
economia. No que diz respeito ao governo de Marcelo Caetano, a
generalidade dos manuais refere-se a aspectos de abertura do regime do
ponto de vista das liberdades democráticas, sendo várias as componentes
encontradas – «regresso de alguns exilados políticos»; «abrandamento da
censura»; «abrandamento da repressão»; ou «organizações políticas foram
legalizadas para ir às urnas».
Num enquadramento que se procura
fazer do ponto de vista internacional, nomeadamente falando das
pressões da ONU ou das questões da II Guerra Mundial, não deixa de ser
questionável que apenas em dois manuais escolares seja feita referência à
relação de Salazar com os regimes fascistas de Hitler e Mussolini.
A caracterização da oposição ao
regime está muito centralizada na questão da participação nas eleições,
como forma de protesto contra regime. No entanto, ações concretas de
combate ao regime fascista que ocorreram e tiverem uma importância
fundamental, como as manifestações e greves de trabalhadores e
estudantes, são muito pouco mencionadas. Este fato pode fazer-nos
colocar a hipótese que Snyders (6) colocou:
a escola não aborda muitas vezes questões que estão na base da
existência das classes dominadas, como a luta geral dos trabalhadores.
Trata-se de qualquer modo de mais um exemplo de seletividade. É também
evidente a pessoalização da oposição. Quando se fala na ação dos
opositores existe uma tendência para centrar a caracterização só em
determinadas personagens (isto é claramente evidente com o general
Humberto Delgado). Confirma-se aqui uma das características apontadas
por vários autores acerca dos programas e currículos de história: a
centralização dos processos históricos em «heróis», individuais. É
evidente que com isto está a ser negligenciado o papel do «coletivo» na
maioria dos avanços históricos das sociedades ao longo dos tempos.
A caracterização do processo
revolucionário do 25 de Abril, na generalidade dos manuais escolares,
reflete claramente uma das características apontadas por Stephanou e por
Felgueiras (7) aos
currículos e programas de História: a apresentação de fatos por
sucessão cronológica, dispostos linearmente, que normalmente é vista
como um todo contínuo, mas que é várias vezes pobre em conteúdo e na
descrição. Relativamente ao desencadeamento da Revolução, o enfoque é
praticamente dado apenas ao golpe militar protagonizado pelo MFA.
Maioria dos manuais referem o apoio popular, mas muito pouco descrevem o
que foi este contributo fundamental e determinante.
Relativamente às consequências
da Revolução, são focados os aspectos essenciais das conquistas na
maioria dos manuais, mas na generalidade das vezes nada é aprofundado.
Em todos os casos, nomeadamente nas conquistas sociais e das liberdades
democráticas, apenas é designada a conquista, não sendo descrito mais
nada, nem como a conquista se efetivou na vida da população. No quadro
da importância que teve a Revolução de Abril para a consagração das mais
vastas liberdades democráticas e direitos, a referência nos manuais
escolares a estes direitos e à sua concretização é quase nenhuma, sendo
dada mais ênfase à instabilidade político-social no pós- 25 de Abril, do
que à descrição da efetivação dos direitos consagrados.
Muitos outros exemplos podiam
ser dados neste plano, desde as descrições feitas da União Soviética ou a
descrição do que foi a II Guerra Mundial e os seus principais atores,
ou mesmo conteúdos de outras disciplinas. Podíamos enveredar pelo
conteúdo dos exames nacionais, aos quais hoje a formação está
«agarrada». Ou poderíamos entrar nos conteúdos dados nas diversas áreas
do Ensino Superior, claramente perpetuando modelos únicos e que ajudam a
perpetuar a perspectiva do sistema.
Este é um tema muito vasto e que
nos dias de hoje continua a estar cada vez mais presente na vida das
escolas, de tal modo «entranhado» que é preocupante pensarmos nas suas
consequências. No sistema capitalista, o uso da escola como aparelho
ideológico e tentando de forma «institucionalizada» moldar consciências e
perspectivas do mundo e da sociedade é uma arma poderosa que a classe
dominante tem nas mãos. A vida, as suas condições, o trabalho de
consciencialização feito, a organização da resistência, será sem dúvida o
maior contributo que se poderá dar para a alteração desta situação. Num
sistema diferente, na democracia avançada, no socialismo, irá florescer
a educação e os seus conteúdos como um fator de libertação e
emancipação do Homem, como impulsionadora do progresso. E tal teria
também um profundo cunho ideológico, sem dúvida…, mas que estaria do
outro lado da barricada.
IN: http://prestesaressurgir.blogspot.com.br/
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