Igor Fuser relata: desigualdades ainda são enormes. Mas direitos
sociais, investimentos públicos e setor não-capitalista da economia
transformaram a Venezuela
Por Igor Fuser, para a Revista do Brasil
A Virada Cultural, em Caracas, se chama Rota Noturna e ocorre uma vez
por mês. Em julho, bandas de rock, reggae, salsa e outros ritmos
embalaram milhares de jovens em pontos espalhados por todo o centro
histórico, numa festa que só terminou ao amanhecer. Na edição seguinte,
em agosto, a virada caraquenha teve como foco os museus, que ficaram
abertos a noite inteira, oferecendo a um público de todas as idades
recitais de música e poesia.
Para o visitante brasileiro, submetido ao bombardeio de grande parte
da imprensa comercial sobre os horrores da “ditadura chavista”, Caracas é
uma agradável surpresa. A população desfruta como nunca do espaço
urbano, que vem sendo recuperado depois de décadas de abandono.
Como em qualquer metrópole da América Latina, o contraste social na
capital venezuelana é dramático. Situada num estreito vale, com 20
quilômetros no sentido leste-oeste e apenas 4 no eixo norte-sul, a
cidade é rodeada por favelas. Nos bairros chiques há mansões suntuosas,
várias delas com campos particulares de golfe, luxo incomum no Brasil.
Lá moram os donos das fortunas acumuladas graças à renda do petróleo –
umcenário que tende a manter Chávez no poder
Igor Fuser relata: desigualdades ainda são enormes. Mas direitos
sociais, investimentos públicos e setor não-capitalista da economia
transformaram a Venezuela
Por Igor Fuser, para a Revista do Brasil
A Virada Cultural, em Caracas, se chama Rota Noturna e ocorre uma vez
por mês. Em julho, bandas de rock, reggae, salsa e outros ritmos
embalaram milhares de jovens em pontos espalhados por todo o centro
histórico, numa festa que só terminou ao amanhecer. Na edição seguinte,
em agosto, a virada caraquenha teve como foco os museus, que ficaram
abertos a noite inteira, oferecendo a um público de todas as idades
recitais de música e poesia.
Para o visitante brasileiro, submetido ao bombardeio de grande parte
da imprensa comercial sobre os horrores da “ditadura chavista”, Caracas é
uma agradável surpresa. A população desfruta como nunca do espaço
urbano, que vem sendo recuperado depois de décadas de abandono.
Como em qualquer metrópole da América Latina, o contraste social na
capital venezuelana é dramático. Situada num estreito vale, com 20
quilômetros no sentido leste-oeste e apenas 4 no eixo norte-sul, a
cidade é rodeada por favelas. Nos bairros chiques há mansões suntuosas,
várias delas com campos particulares de golfe, luxo incomum no Brasil.
Lá moram os donos das fortunas acumuladas graças à renda do petróleo –
uma riqueza fabulosa, da qual o povo até recentemente só recebeu as
migalhas.
Com a chegada de Hugo Chávez à presidência, no final de 1998, as
regras do jogo mudaram. Um gigantesco pacote de programas sociais fez
cair o índice de pobreza de 70% para 28%. “Se temos a sorte de ter
petróleo, que seja usado em favor do povo”, defende Gustavo Borges,
coordenador de uma rede de rádios comunitárias em 23 de Enero, bairro
popular que está sendo urbanizado com a instalação de escolas, clínicas
de saúde, quadras esportivas e iluminação pública. No ano passado, em
viagem ao Brasil, Borges visitou a favela carioca de
Rio das Pedras, e se diz chocado com o que viu: “No teu país, a população mais pobre vive em condições abaixo da dignidade humana”.
Rio das Pedras, e se diz chocado com o que viu: “No teu país, a população mais pobre vive em condições abaixo da dignidade humana”.
A melhora da realidade social venezuelana é, de fato, impressionante.
Em Caracas, dois teleféricos recém-inaugurados levam favelados até o
alto dos morros. Nas ruas, não se enxerga uma única criança pedindo
esmolas ou em situação de risco. Ninguém dormindo na calçada por falta
de abrigo. O que mais se destaca na paisagem urbana são os canteiros de
obras da Misión Vivienda, projeto governamental que pretende erguer em
dois anos 350 mil casas ou apartamentos (mais de 90% já entregues) para a
população sem teto ou precariamente instalada, no país inteiro. As
moradias populares são espaçosas, construídas com material de qualidade e
bem localizadas.
Muitos projetos habitacionais destinados aos mais pobres se situam em
bairros de classe média, rompendo a segregação social no espaço urbano.
Nem sempre os recém-chegados são recebidos com simpatia. “Existem
pessoas de classe média que não aceitam viver ao lado dos pobres”,
constata o arquiteto Francisco Farruco, um dos coordenadores da Misión
Vivienda. “Eles consideram o nível de educação dos novos moradores
inferior, ou inadequado seu comportamento, o que é muito discutível.”
Para Farruco, esses conflitos são inevitáveis em um país que está
reduzindo a desigualdade. Nas suas palavras: “O sonho de transformar
Caracas passa por integração. Estamos construindo uma cidade que rompa
com barreiras sociais”.
Erudição popular
Os sinais dessa mudança são muito claros. Como jornalista, viajei a
Caracas várias vezes na década de 1990. Minha lembrança é de um lugar
decadente e perigoso. Agora me surpreendi ao caminhar pela Sábana
Grande, o centro comercial da cidade, limpo, bem iluminado e seguro.
Numa esquina, um mágico reúne a seu redor dezenas de curiosos. Ali
perto, crianças se divertem nos equipamentos recreativos instalados pela
estatal Petróleos de Venezuela. A reurbanização daquela área faz parte
de um imenso projeto de recuperação do espaço urbano, o que inclui
teatros, centros esportivos, praças e monumentos históricos.
Entre os investimentos públicos, a ênfase à cultura chama atenção.
Não por acaso, nos trens do metrô de Caracas se ouve música clássica o
dia inteiro. É comum a presença de jovens carregando instrumentos. São
alunos do Sistema Venezuelano de Orquestras, uma referência
internacional. O país é, talvez, o único do mundo em que um maestro –
Gustavo Dudamel, da Orquestra Sinfônica de Caracas – é um ídolo de
massas.
A paisagem remodelada tem como pano de fundo uma transformação social
mais profunda, que inclui a elevação da renda dos trabalhadores. Em
2011, a remuneração média teve um aumento real de 8,5% e o novo salário
mínimo, anunciado em maio deste ano, um reajuste de 33,5%. A inflação,
porém, é muito alta, 27% em 2011. O congelamento dos preços de 19
produtos essenciais garante uma relativa proteção ao poder de compra. E
uma gigantesca rede de mercados e feiras livres estatais (a Mercal)
oferece todos os itens da cesta básica pela metade dos preços do
comércio privado.
Sem surpresas
A legislação trabalhista que entrou em vigor em maio amplia direitos
dos assalariados em uma escala sem paralelo em qualquer outro país. O
benefício em caso de demissão sem justa causa equivale à remuneração de
105 dias por ano de serviço. A trabalhadora que dá à luz ganha seis
meses e meio de licença e tem garantia de emprego por dois anos. Ainda
assim, a parcela da mão de obra com carteira assinada tem aumentado, e o
desemprego se situa atualmente em 7,5%, um índice próximo ao
brasileiro.
O “socialismo do século 21″, como Chávez batizou seu projeto
político, convive com um setor privado que controla 70% da economia e
garante gordos lucros aos empresários, graças à elevação do consumo
popular. Do outro lado, as empresas controladas diretamente pelos
trabalhadores crescem na preferência dos consumidores, com produtos como
os laticínios Los Andes (vendidos até mesmo nas padarias dos bairros
ricos) e o café La Fama de América, exportado para Europa e Estados
Unidos. Na embalagem, essas mercadorias trazem sempre uma pequena frase,
rodeada pelo desenho de um coração: Hecho en Socialismo.
Há ainda conquistas extraordinárias – que não caberão neste espaço –
em educação, saúde e na participação política dos cidadãos, que se
organizam em conselhos comunitários (mais de 40 mil, em todo o país)
para fiscalizar as autoridades e definir investimentos públicos para as
regiões onde moram. Como nada disso é divulgado na imprensa brasileira,
na qual Chávez é apontado diariamente como um tirano grotesco, imagino a
dificuldade dos leitores em entender o fato de ele liderar as pesquisas
para as eleições de outubro com uma vantagem de 15 a 25 pontos sobre
seu adversário direitista. Para quem conhece a verdadeira face da
Venezuela, não há nisso surpresa alguma.
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