Carta Maior apresenta esta matéria especial sobre São Petersburgo, o berço da revolução de 1917, evocando as reminiscências, que ainda se encontram na cidade, dos acontecimentos que levaram à criação da primeira sociedade socialista do século XX. Na medida em que o leitor for lendo a matéria, e clicando sobre as palavras marcadas, aparecerão fotos atuais dos cenários referidos.
Flávio Aguiar
No final de setembro, quando lá estive, as árvores já estão tomadas pelas suaves cores do outono europeu. Mas a principal propaganda da cidade é feita em torno de suas “noites brancas”, no verão, quando as noites são curtíssimas e deixam o céu apenas esmaecido. São Petersburgo, com 6 milhões de habitantes, é a metrópole mais próxima do Pólo Norte.
São Petersburgo foi fundada em 1703 pelo czar Pedro, O Grande. Pedro foi grande em todos os sentidos: tinha 2m04 de altura, e idealizou modernizar a Rússia. Para tanto quis esta nova cidade, como símbolo de seu poder e de uma nova era para seu país. Contou com um arquiteto de gênio, Bartolomeo Francesco Rastrelli, italiano, que veio para São Pertersburgo em 1716 com seu pai, em grande parte das principais construções da cidade. Quase ao fim do século XVIII, outro italiano, Carlo Rossi, acrescentou novos prédios aos de Rastrelli.
Na construção da cidade morreram muitos trabalhadores, vitimados pelas más condições de vida e particularmente de saúde, pois o lugar era pantanoso e completamente gelado no longo inverno. Além disso, São Petersburgo suportou um cerco de 900 dias durante a Segunda Guerra Mundial, mas não foi ocupada nem bombardeada. Sua arquitetura dos séculos XVIII e XIX está intacta, apesar de muitos prédios estarem em mau estado de conservação. A população, no entanto, sofreu demais com o cerco. A luta chegou a poucos quilômetros da cidade, e a fome e as doenças também provocaram mortes aos milhares. O resultado disso é que São Petersburgo tem hoje o maior cemitério do mundo.
Aliás, tudo é grande nesta cidade. Sempre pensei que o estilo monumental na arquitetura e na escultura fosse uma das marcas do regime comunista, o que o aproximava esteticamente do estilo preferido pelos nazistas. Era, é verdade. Mas visitando São Petersburgo me dei conta que essa preferência pelo monumental já existia no tempo dos czares. Os portais são enormes, as praças são enormes, os prédios são gigantescos. O Palácio de Inverno, hoje museu Ermitage, obra de Rastrelli, tem 400 salas, distribuídas em 3 andares de um prédio que tem, sozinho, o tamanho de um quarteirão. Tudo é incrivelmente belo, mas ao mesmo tempo vê-se que esse estilo provocava uma sensação de esmagamento do indivíduo frente ao poderio e a magnificência da monarquia. A arquitetura do regime comunista não rompeu com esse estilo.Tornou-o mais sóbrio, mais “funcional” e até mesmo menos bonito.
Desejando reencontrar símbolos da grande revolução de 1917, eu esperava na verdade me deparar com uma devastação. Não foi o que aconteceu. Andando um pouco a esmo pela cidade, logo depois de atravessar uma das principais e mais belas pontes da cidade (são 500!), logo eu e minha companheira Zinka nos deparamos com uma praça enorme, e bem à sua frente, com um quadrilátero cercado por bandeiras vermelhas, com flores da mesma cor e um fogo simbólico ao centro. As informações para o viajante estrangeiro não são abundantes. Mas decifrando o russo escrito em alfabeto cirílico, foi possível descobrir que a praça chamava-se Marsowo Pole, Campo de Marte. O parque foi inaugurado no século XIX, e desde 1919 abriga, na praça, um memorial onde estão enterrados os revolucionários que morreram durante a revolução de outubro/novembro de 1917 (outubro pelo calendário Juliano, novembro pelo Gregoriano, que hoje é o adotado também na Rússia).
Da praça já se avistam as torres da Igreja da Ressurreição, hoje um dos cartões postais da cidade. Essa igreja é parecida com a de São Basílio, na Praça Vermelha, em Moscou, e de fato a teve por modelo. A de Moscou foi terminada em 1560, enquanto a de São Petersburgo foi construída de 1883 a 1907. O estilo imitativo lhe dá uma natureza kitsch, mas isso não lhe diminui a estranha beleza, ainda mais se emoldurada pelas árvores cobertas pelas cores outonais.
Erigiu-se a igreja em homenagem ao czar Alexandre II, no local onde ele morreu, vítima de um atentado à bomba. Os autores do atentado pertenciam à organização “Vontade do Povo”, e muitos deles foram presos e fuzilados ou deportados na seqüência. Os comunistas foram muito críticos em relação a essas práticas, que julgavam incoerentes e inconseqüentes.
Voltando em direção ao Rio Neva e acompanhando-o para o Oeste, em direção da baía da Finlândia, chega-se ao mítico Palácio de Inverno, para quem, como eu, tenha se formado politicamente, pelo menos em parte, estudando eventos como a Revolução Francesa de 1789 e a Russa de 1917. O Palácio de Inverno, monumental como quase tudo nesta cidade, foi tomado pelos revolucionários no lance capital do início da grande revolução. Também se pode ver e visitar, ancorado no rio Neva, o encouraçado Aurora, cujo tiro de seu canhão frontal foi a senha que desencadeou os acontecimentos na segunda quinzena de outubro, pelo calendário Juliano, primeira de novembro pelo Gregoriano.
O palácio fica em frente a uma praça também monumental, onde se concentraram os atacantes. Ali, naquela praça e em seus arredores, também se deu o chamado Domingo Sangrento, no inverno de 1905. Nesse dia uma marcha pacífica de trabalhadores e familiares famintos foi reprimida pela guarda do czar com uma fuzilaria que deixou centenas de mortos e milhares de feridos. Hoje em dia esta praça é palco de desfiles militares, cerimônias patrióticas e manifestações de protesto de todo o tipo.
O Palácio foi construído por Rastrelli entre 1754 e 1762. Hoje abriga o museu Ermitage, cuja coleção de pinturas foi iniciada pela czarina Katarina II com 225 quadros de mestres holandeses e flamengos pertencentes ao “marchand” berlinense, Johann Ernst Gotzkowsky. Este acervo fora reunido primeiramente com a idéia de passar às mãos do rei da Prússia, Frederico II. Katarina II continuou a comprar obras de arte e , como seu antecessor Pedro, Grande, objetos da antiguidade e curiosidades. Seus sucessores continuaram essa prática, que o regime comunista, a partir de 1917, apesar da severidade das guerras contra-revolucionárias e da Segunda Guerra, não interrompeu. Aliás, pelas datas das compras dos quadros pode-se ver que, pelo menos dentro do museu, a propalada hostilidade entre comunistas e vanguardas não existiu.
Katarina II queixava-se de que ninguém apreciava seus quadros. Hoje o acervo do museu é visitado todos os anos por hordas e mais hordas de amantes das artes e de turistas de todos os rincões do mundo. Eu me pergunto o que ela diria a esse respeito.
Ao entrar no museu... Bem, viajante, visitador, turista, peregrino da revolução e/ou das artes, se és cristão, persigna-te, se muçulmano vira para Meca e faz a oração, se és judeu lê um salmo de Davi ou algo assim, e daí por diante em todas as religiões e em todos os ateísmos. O que vais ver não tem igual no mundo.
Em termos de tamanho, o Ermitage só tem pares no Louvre francês, no Metropolitan de Nova Iorque e no Prado de Madri. Nem o Museu Britânico nem o Pérgamon de Berlim se lhe comparam. São 400 salas com 4 milhões de peças. Mas não é só isso. É que tudo, absolutamente tudo, é do bom e do melhor. Não há uma única peça de se possa dizer: “ah, este quadro é daquela fase menor do pintor X e foi comprado para cobrir uma lacuna”. Não há lacunas no Ermitage. E cada quadro, cada um deles, tem uma moldura que lhe vai perfeitamente. Não se pode dizer: “ah, esta moldura ficaria melhor no quadro ao lado, naquele da outra sala, etc.”. Vê-se que cada moldura foi pensada especificamente para cada quadro. É tudo muito bom, mas ressalto que os acervos do Renascimento, do Impressionismo e da Vanguarda do século XX são grandiosos.
Quase em frente ao Ermitage, do outro lado do rio, está a Fortaleza de São Pedro e São Paulo, em cujo interior fica a Catedral do mesmo nome, onde estão os túmulos dos czares da dinastia dos Romanov (diz-se Románov, eu aprendi). Tirei uma foto da entrada com alegres cadetes de academias militares da cidade, no portão principal
No interior da Catedral ortodoxa está um dos mais eloqüentes ícones (o nome vem a propósito...) da restauração simbólica do czarismo por que passa a Rússia depois da queda do comunismo. Há um mausoléu especial para os restos mortais do czar Nicolau II, deposto e morto com seus familiares pelos revolucionários, num dos episódios até hoje mais polêmicos da revolução. Até aí, tudo bem, digamos. Mas paira no lugar uma atmosfera de culto à continuidade da dinastia, que inclui as fotos dos atuais descendentes dos Romanov, que dá o que pensar.
Mais ou menos entre a fortaleza e o lugar onde está o encouraçado Aurora, pode-se visitar o hoje chamado Museu da História Política da Rússia. Antigamente, ele chamava-se Museu da Grande Revolução. Os atuais curadores garantem que deixaram tudo como estava antes da queda do comunismo. São duas casas. A primeira pertencia a um barão da nobreza russa e é basicamente um museu da luta política soviética depois da morte de Lenine. É, portanto, um memorial anti-stalinista, mas que chega, laudatoriamente, ao dias de Putin, que têm algo de neo-czarismo. Aliás, este museu abriga os únicos vestígios de Leon Trotski que vi na cidade, com fotos e documentos do grande revolucionário. Nas ruas, por exemplo, encontra-se Lenine por todo lado. Entre as Matrioshkas, aquelas simpáticas bonequinhas russas, encontram-se bonecos com rostos de tudo: Lênin, Stalin, Kruschev, Brezhnev, Putin, Gagarin, George Bush, jogadores de futebol, de futebol americano, etc. De Trotski, nem a sombra do bigode. Nada. Não existe.
A segunda casa é uma “villa”magnífica, que pertenceu a uma bailarina, Matilda Kichensssiskaja, que, a julgar pelas fotos, era tão bela quanto a residência, concluída em 1902, em estilo Art Nouveau. Nesta casa está o acervo referente a 1917. A casa serviu de QG para o comitê central dos comunistas em 17 e abrigava a sala de reuniões. Destaques: o gabinete de Lenine, intacto, e a vista da sacada de onde ele seguidamente discursava para as massas reunidas embaixo.
Em matéria de gabinetes, pego uma linha transversal para dizer que também se pode visitar o gabinete do grande Fiodor Dostoievski, na casa que leva o nome do escritor e hoje é um museu aberto à visitação. Na verdade, essa é a última casa do escritor na cidade, onde ele morou em várias. Era muito metódico, escrevia à noite, dormia até tarde. Consta que no dia anterior ao de sua morte foi à igreja e pediu ao padre que viesse até sua casa para lhe dar a bênção. Morreu pela manhã do dia seguinte e também consta que o relógio em seu gabinete parou nesse mesmo momento, e guarda até hoje a hora de sua morte.
Voltando à revolução: pude visitar também a famosíssima Estação Finlândia, que tem esse nome porque dela partia o trem que ia para o país vizinho. Nela Lenine chegou de trem, do exílio, em fevereiro de 1917 (sempre é bom lembrar que essas datas são do calendário Juliano e há uma diferença de uns 15 dias entre ele e o Gregoriano). Logo em seguida Lenine teve de fugir para novo exílio, desta vez curto, na Finlândia. A locomotiva que o levou nesta viagem ainda está lá na estação, numa autêntica redoma de vidro.
Quase ao lado da estação há uma outra, esta de Metrô, a Leninaskaja, onde se encontra um mural em homenagem ao líder da revolução. Em outra estação (Ploschad Wosstanija) encontram-se medalhões incrustados na parede, que lembram momentos da revolução. Ao lado desta fica a Maiakovskaja, belíssima, em homenagem ao extraordinário poeta revolucionário. O próprio metrô, ainda muito eficiente e barato, não deixa de ser uma lembrança do regime desaparecido, pois é evidente que ele foi construído para beneficiar a enorme massa de trabalhadores que viveu e vive na cidade. Ele é dos mais profundos que existem, suas escadas são enormes e nelas vêem-se pessoas lendo livros, jornais, fazendo palavras cruzadas, tal o tamanho da viagem.
Para completar esta magnífica visita às reminiscências da Grande Revolução em São Petersburgo, fomos eu e Zinka a uma cidade próxima, onde fica o suntuoso e belíssimo palácio de Katarina, mandado construir por Pedro, o Grande, onde de novo vê-se o gênio de Rastrelli. O estilo se repete: é tudo monumental, o magnífico parque, o palácio enorme, os salões internos. O de baile tem 900 metros quadrados, por exemplo. Dentro dele há o resquício de um dos maiores mistérios da Segunda Guerra. O rei Frederico II da Prússia deu de presente ao seu colega russo uma sala, ou seja, pagou sua construção e seus materiais: é o Salão Âmbar, cuja decoração é toda nesta cor, além de abrigar diversas peças desse material. Em retribuição o czar enviou um regimento militar para seu colega prussiano.
Pois bem, durante a Segunda Guerra, o salão foi desmontado e levado pelos nazistas, que ocuparam a cidade como parte do cerco a S. Petersburgo, para outro local. E ali tudo desapareceu. Ninguém sabe até hoje o que aconteceu com o salão, se ele foi destruído, ou se está escondido em algum sítio privado de colecionador. Recentemente, com base em fotografias, o salão foi reconstruído.
A visita a este palácio completa uma visão, a de que pode-se compreender ao mesmo tempo tanto a grandeza, o bom gosto e o poderio do czariato russo, quanto os motivos e a necessidade da Grande Revolução. É tudo ao mesmo tempo muito bonito e muito acintoso. E não se pense que aqui fala algum iconoclasta que prega a destruição destes símbolos. Pelo contrário. Sua conservação é necessária, assim como sua contemplação, porque são cicatrizes do tempo, e são também, além de uma homenagem ao gênio de seus construtores, uma homenagem ao sacrifício de seus trabalhadores.
Se São Petersburgo (que se chamou sucessivamente Petrogrado e Leningrado antes de voltar ao nome original) é uma cidade romântica pelo ambiente, também o é porque abrigou uma das grandes revoluções românticas da humanidade. Sei que algum marxista enragé poderá me atacar por dizer isso eu de uma revolução que apelava para uma leitura científica da história. Mas lhe apelarei: vá a São Petersburgo, e contemple o que ficou da revolução. De científico, é verdade, ficou o estro inspirador do método marxista, que foi e é dos mais fecundos do pensamento humano. Mas ao lado disso ficou aquele gigantesco esforço para, em meio aos escombros de tantas guerras, construir uma nova humanidade. Não deu certo. Nas ruas de S. Petersburgo por vezes hoje se encontram exemplos que reúnem em si o pior das formas de controle que o regime autoritário com que se construiu o comunismo deixou como herança. Na Rússia há pequenas e grandes máfias para tudo. E isso convive com a pior barbárie do capitalismo vencedor, que trouxe um individualismo feroz e desabrido que beira a anomia (por exemplo, no tráfego de automóveis, que é dos mais violentos e agressivos que já vi). Mas tudo isso só ressalta a grandeza daqueles sonhos e daquelas utopias, e daqueles que lhes dedicaram suas vidas e por vezes a sua morte. Eles, tais heróis e tais sonhos, seguem na memória grávida de futuro, não pelas estatuárias, mas pelas cicatrizes da passagem daquelas e daqueles que romanticamente soltaram sua imaginação e seu amor pela solidariedade e pela liberdade. da imensa fortaleza, onde esteve preso Máximo Gorki durante o regime czarista. A fortaleza também foi um bastião dos revoltosos de 17, tomada pelos soldados amotinados.
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